sábado, 15 de novembro de 2008

Da natureza do mercado

"Vaidade das vaidades - diz Coélet - vaidade das vaidades, tudo é vaidade." Assim começa o livro de Eclesiastes, onde a palavra hebraica coélet significa o homem da assembléia, o pregador. Diante da crise econômica que se apresenta, somos levados a nos preocupar com o que vai ocorrer com as taxas de juros, os preços dos produtos que vêm de fora, a balança de exportações nacional e sua repercussão no financiamento de imóveis e veículos.

Nietzsche diria que o homem cria coisas (entendidas aqui como valores axiológicos) e depois esquece que as criou. No século XVI, os holandeses, encantados com a beleza das tulipas, lhes atribuíram valores de mercado absurdos, chegando uma única tulipa a valer 24 toneladas de trigo. Até que um dia alguém percebeu quão absurda era a situação e os preços das tulipas despencaram vertiginosamente. Hoje, observamos um fenômeno semelhante: os bancos pegam um pedaço de papel que, por si só, não vale nada, dão-lhe um carimbo que atesta sua autenticidade perante o mercado de ações, seja como carta de crédito, seja como ações, seja como qualquer outra coisa que adquira valor monetário.

Transformam lixo em ouro.

Esse processo evidencia o caráter abstrato do dinheiro, aproximando-o do conceito de valor elaborado por Saussure, segundo o qual os elementos do sistema lingüístico não possuem valor inerente, mas o adquirem em oposição aos demais, como as peças em um tabuleiro de xadrez: o que define o cavalo não é sua cor, seu formato ou o material de que é feito, o cavalo é o cavalo apenas porque não é o rei, ou a dama, ou qualquer outro elemento do sistema. Se estendemos essa idéia à economia, percebemos que, desde o estabelecimento da primeira moeda, passou-se a valorar coisas úteis ao homem com base em um sistema abstrato universal em certa medida, através do qual passou-se a ter um parâmetro igualitário de valoração de bens, mercadorias e serviços.

Com o passar do tempo, o aspecto abstrato do dinheiro foi ganhando mais e mais relevância, e logo passamos das quantidades reais de dinheiro às quantidades abstratas: um quilo de ouro é, evidentemente, mais ouro que cem gramas de ouro, mas o que faz com que uma nota de cinco reais seja mais dinheiro que uma nota de dois reais? Em um nível maior de abstração, chegamos finalmente a títulos de investimento, cartas de crédito e até ao saldo da sua conta bancária: não há, realmente, nenhum dinheiro ali, apenas a afirmação do dinheiro, o dado, a informação do dinheiro. Não há uma caixinha no banco com seu nome na tampa e todo o seu dinheiro dentro.

Dizer que vivemos à mercê da vontade dos investidores talvez seja dramático demais, mas vemos todos os dias anúncios de pacotes para tentar estancar o estrago da especulação mundial, da irresponsabilidade de investidores que se levantam de madrugada para checar o fechamento dos pregões da Ásia e amanhecerem comprando e vendendo.

O fato é que a economia e o dinheiro em si se tornaram tão abstratos (melhor, passaram a evidenciar de tal forma seu caráter abstrato) que já não somos capazes de prever, por exemplo, os impactos da crise financeira na chamada economia real, quando o simples fato de se designar uma economia real já nos mostra que há uma economia irreal, cujos impactos não podemos mensurar, mas que, certamente, se baseia em um jogo de abstrações no qual eu não podia fazer algo por não possuir o dinheiro necessário e, de repente, passo a poder, mas continuando sem possuir o dinheiro, apenas porque o mercado adquiriu uma informação a meu respeito: "agora ele tem dinheiro", mas na verdade eu não tenho, o que eu tenho é a confiança dos investidores. Se é verdade que vivemos em uma sociedade da informação, essa verdade diz respeito especialmente ao mercado.

O problema é distinguir em que ponto essa informação, esse dinheiro que não existe, se transforma em escolas, em comida, em bibliotecas. Mais ainda: como se pode confiar sua existência ao vai-e-vem desse dinheiro que, na verdade, não existe.

"Além disso, meu filho, fica atento: fazer livros é um trabalho sem fim, e muito estudo cansa o corpo.

"Fim do discurso. Tudo foi ouvido. Teme a Deus e observa seus mandamentos, porque aí está o homem todo." (Ecl 12,12-13)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Alto Surinamês

Não, não estou aprendendo surinamês. Ainda. Quero dividir com você uma reflexão que me foi instigada por um episódio do programa Passagem Para intitulado O homem que sabe javanês, gravado no Suriname. Lá, no Suriname, se falam três línguas: o surinamês, a língua do povo, falada nos mercados e nas ruas; o javanês, a língua falada entre familiares; e o holandês, fruto da colonização, a única ensinada nas escolas.

Pois bem. Durante o programa foram exibidos trechos de um casamento tradicional surinamês, que começa com o pai do noivo e a mãe da noiva recitando versos alternadamente. E é aí que surge o problema. Os versos recitados são em alto surinamês, e ninguém mais fala alto surinamês! Ninguém entende nem mesmo uma palavra!

Diante disso, pense comigo: como é que andará a integridade desses versos? Digo, se aparecesse um protofalante de alto surinamês, compreenderia algo? Se não, o que eles falam é alto surinamês? Mais ainda: é uma língua? Se a língua tem na comunicação seu único fim, como pensar o alto surinamês?

Gosto de pensar profundamente sobre essa questão. Que houve o alto surinamês é certo ou quase certo. Porém, e agora? Há? Há ainda uma expressão sua, ou mesmo um espectro, um fóssil, algo que traz a certeza indelével de sua existência no passado, um eco que a revive hoje. Dizia o magister: "o latim não está morto, ele vive nas línguas a que deu origem. Como poderia um tronco secar e vicejarem seus galhos?". De quando em quando os tradutores da Bíblia, sobretudo dos salmos, esbarram em algum termo ou construção em hebraico antigo ou em aramaico que simplesmente "não existe", então eles fazem conjecturas a partir do contexto, da tradição da Igreja e das versões dos escritos judaicos gregos.

Como pode o alto surinamês, uma língua que não existe, subsistir? Que força de palavras mágicas têm as fórmulas do casamento tradicional surinamês que faz com que "sobreviva" o alto surinamês, mesmo quando ninguém o entende mais? E, principalmente, se um dia o povo conheceu essa língua, onde foram parar as veias por onde corria o alto surinamês?